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Contos e Lendas

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Cobra Branca

Há muito, muito tempo, na província de Sichuan, zona Ocidental da China, erguia-se um monte famoso e sagrado, o Monte Emei. Aí viviam duas cobras. Uma era branca, enorme e elegante; a outra, mais pequena e muito graciosa, era verde. Ambas possuíam poderes mágicos e esforçavam-se por alcançar a imortalidade.

No mesmo monte vivia uma tartaruga maldosa, que odiava as cobras e andava sempre em conflito com elas. Depois de muitas lutas, as cobras conseguiram expulsar a tartaruga. Mas afinal, em vez de alívio, começaram a sentir-se aborrecidas, por falta daquele tipo de agitação que sabiam existir entre os seres humanos.

Por altura do Qing Ming, na primavera, decidiram, então, dirigir-se para o Lago do Oeste, a sul do Rio Yangtzé.

Ali, servindo-se dos seus poderes mágicos, transformaram-se em duas formosas raparigas. A cobra branca adotou o nome de Pérola Branca. A companheira adotou o nome de Jade Verde.

Procuraram então alcançar o lugar onde os humanos viviam, mas sabiam que, para lá chegar, teriam que encontrar a Ponte Quebrada.

JADE VERDE: Está ali uma ponte, mas não me parece quebrada.

PÉROLA BRANCA: Julgo que Ponte Quebrada é o nome. Acho que a ponte não está partida.

JADE VERDE: Então porque é que lhe deram este nome?

PÉROLA BRANCA: Não sei.


Naquele momento começou a chover e resolveram abrigar-se debaixo de um salgueiro. Quando menos esperavam, surgiu diante delas um belo jovem, que trazia guarda-chuva e se ofereceu para as proteger do aguaceiro.  

PÉROLA BRANCA: Quem é o senhor?

XU XIAN: Chamo-me Xu Xian. Sou da cidade de Jen Jiang. Fiquei órfão de pai e mãe muito cedo e trabalho como aprendiz de boticário numa ervanária. Gostava muito de ter ido para a escola, mas não tive meios para pagar os estudos.

PÉROLA BRANCA: É muito amável em proteger-nos da chuva.

JADE VERDE: Sim, agradecemos muito, mas temos que nos despedir porque a chuva está a passar.

PÉROLA BRANCA: Então adeus.

XU XIAN: Esperem. Eu vou para a cidade. E vocês, para onde vão?

JADE VERDE: Nós? Também vamos para lá.

XU XIAN: Então se quiserem venham comigo de barco...

Aceitaram a proposta. Xu Xian foi chamar o barqueiro, e as cobras transformadas em raparigas ficaram a conversar.

JADE VERDE: Reparaste no olhar dele?

PÉROLA BRANCA: Não, o que é que tinha de especial?

JADE VERDE: Parecia encantado contigo. E tu, também ficaste contente, não disfarces.

PÉROLA BRANCA: Que disparate!

JADE VERDE: Ora, ora, eu bem vi como o fixavas e como ele corava! Acho que vai haver romance...

A conversa foi interrompida pela chegada do barco, onde os três tomaram lugar. Viajavam em silêncio, olhando as águas cor de esmeralda. A certa altura o barqueiro pôs-se a cantar.

BARQUEIRO: Quem viaja no mesmo barco tem que praticar boas ações, ao longo de dez vidas… E quem quiser um casamento feliz tem que praticar boas ações ao longo de cem vidas.


Quando o barco estava prestes a atracar, Jade Verde olhou para o céu e a chuva voltou a cair. Xu Xian propôs-lhes então que levassem o guarda-chuva. 

XU XIAN: Se não vos parecer indelicado, passarei amanhã por vossa casa para o ir buscar.

PÉROLA BRANCA: Boa ideia! Moramos aqui perto. A casa tem… tem telhado vermelho… e portões vermelhos.

JADE VERDE: É isso, telhado e portões vermelhos.

Mal o rapaz voltou costas, Jade Verde piscou o olho à amiga e seguiram caminho. Adiante, usaram as suas magias para transformar um templo que estava em ruínas numa mansão com telhado e portões vermelhos. No dia seguinte, o rapaz apareceu e ficou maravilhado, porque no jardim havia fontes, cascatas e lagos, onde nadavam carpas vermelhas, amarelas e prateadas.

XU XIAN: Não me lembro de ter visto aqui uma casa, quanto mais um palacete com um jardim fabuloso. Até parece impossível terem convidado um simples aprendiz de ervanária para entrar aqui. 

 


Ao aproximar-se da casa, ouviu a voz de Jade Verde.

JADE VERDE: Entre, Senhor Xu Xian. Pérola Branca fez bolinhos de arroz, chás e licores aromáticos, venha prová-los.

PÉROLA BRANCA: Venha, venha! Sente-se ao meu lado. Quero ouvir falar da ervanária e dos remédios feitos com plantas que curam doenças. É um assunto que me interessa imenso.

O rapaz ficou contente, falaram bastante e, a partir de então, passou a visitá-las com regularidade. Um dia Pérola Branca perguntou-lhe:

PÉROLA BRANCA: Que planos tem o senhor para o seu futuro?

XU XIAN: Se tivesse dinheiro, abria a minha própria ervanária. O pior é que mal ganho para me sustentar e nunca passarei de auxiliar de boticário.

PÉROLA BRANCA: Eu tenho economias. Se aceitar, podemos fazer sociedade e montamos uma ervanária em Zhenjiang.

XU XIAN: A grande cidade a sul do Lago do Oeste?

PÉROLA BRANCA: Sim. Ouvi dizer que aí é fácil começar o negócio. Abrimos a nossa própria ervanária numa casa que tenha um andar por cima para vivermos.

XU XIAN: Só nós dois, ou a Jade Verde fica connosco?

PÉROLA BRANCA: Fica, claro. Ela pode ocupar-se da casa, eu preparo os remédios com as plantas curativas e o senhor atende as pessoas ao balcão.

XU XIAN: Boa ideia! E que nome daremos à ervanária?

JADE VERDE: Eu proponho Casa da Harmoniosa Saúde.


Estava tudo bem encaminhado e podiam ter sido muito felizes, se não fosse a inveja da maldita tartaruga do Monte Emei que ouviu falar deles e soube que eram muito admirados, por serem competentes e bondosos. Sendo má e invejosa, a tartaruga decidiu estragar-lhes a vida. Para isso, refugiara-se, vivendo escondida, num mosteiro budista onde se apoderara de três objetos sagrados de Buda: a Kasaya, veste que lhe permitiu disfarçar-se de monge; o cetro com o Dragão Azul, que usou para matar Fa Hai, Mestre do Templo de Jinshan; um vaso de ouro que lhe conferia o poder de aprisionar os espíritos. Depois, adquiriu forma humana, adotou o nome do Mestre, e dirigiu-se à ervanária para estragar a harmonia e a felicidade que ali reinava.

FA HAI (a tartaruga): Eles já vão ver o que lhes acontece!


Fa Hai desceu da montanha e a primeira coisa que fez foi dizer a Xu Xian que a mulher, que ele tanto amava e lhe ia dar um filho, era afinal uma cobra branca!

XU XIAN: Como se atreve a dizer uma coisa dessas? Então a futura mãe do meu filho é uma cobra?

FA HAI: Pode acreditar. 

XU XIAN: Não acredito, não.

FA HAI: Escute-me. Estamos nas vésperas do festival dos Barcos-Dragão. No dia da festa toda a gente bebe vinho de rosalgar. Quando ela o beber, verá que se transforma numa cobra.

As duas amigas que tinham ouvido a conversa, perceberam que Pérola Branca não podia beber aquele vinho e, a pretexto de que estava grávida, disseram que era melhor ela não ir e ficar em casa a descansar. O pior é que Pérola Branca, por insistência do marido, já desconfiado,  acabou mesmo por beber um copo do tal vinho de "rosalgar". De imediato sentiu tonturas, enroscou-se numa manta, deitou-se na cama e adormeceu. Xu Xian, mais sereno, terminou umas tarefas e foi espairecer junto ao lago. Quando regressou a casa e se deitou, sentiu algo frio e escamoso junto à pele. Acendeu a luz e, horrorizado, viu junto de si uma enorme cobra branca. 


Pobre Xu Xian! Caiu fulminado com o susto. Entretanto Pérola recuperara a forma humana e vendo o marido sem sentidos pôs-se a gritar.

PÉROLA BRANCA: Ai, Jade Verde! Tenho de salvar o meu amor. Voarei até  à Montanha de Kunlun e pedirei ao Espírito do Oeste que me dê um lingzhi (cogumelo da imortalidade)  para preparar um elixir mágico a fim de devolver a vida ao meu amado Xu.

Assim foi. O elixir resultou Xu Xian acordou sem perceber se o que se passara tinha sido realidade ou se fora um pesadelo. Mas depois de muito pensar, tomou uma decisão.

XU XIAN: Tanto me faz que seja cobra ou mulher, pois amo-a do fundo do coração e vai ser a mãe do meu filho.

A tartaruga é que não se conformou. Sempre disfarçada de monge, Fa Hai, tentou convencer Xu Xian de que a sua mulher era um espírito demoníaco. Como ele não se deixou  persuadir, capturou-o e aprisionou-o no templo. Ao saber que o marido estava preso, Pérola Branca jurou que iria salvá-lo. Com a ajuda de Jade Verde, desencadeou uma tempestade terrível. O rio levantou-se em ondas gigantes, efervescentes, que embatiam contra os muros do templo, também fustigados por violentíssimas rajadas de vento. Fa Hai, atirando pelos ares a Kasaya que roubara a Buda, criou um dique intransponível para águas e ventos e conseguiu dominar a tempestade. Tantas foram as emoções que, nessa mesma noite, Pérola Branca deu à luz um rapaz, a quem chamaram Xu Shilin. Desesperada por não ter conseguido salvar o marido, voltou para casa com a criança, lamentando-se para a sua grande amiga:

PÉROLA BRANCA: Sinto-me tão triste, tão infeliz. 

JADE VERDE: Acalma-te. Agora tens que pensar no teu filho.

PÉROLA BRANCA: Sem Xu Xian nunca poderei ser feliz. 


O tempo foi passando. Um dia Xu Xian conseguiu libertar-se do cativeiro, mas não chegou a reencontrar a mulher porque Fa Hai, servindo-se do vaso de ouro, capturara o espírito de Pérola Branca e foi enterrar o vaso na Montanha Dourada, perto do Lago do Oeste. Para garantir que ninguém o encontraria, construiu por cima um Pagode e quando tudo ficou pronto gritou:

FA HAI: Ouve, maldita cobra branca, só sairás daí quando o lago secar ou o pagode ruir ou aquele poste de ferro florir!

Na intenção de se vingar e de salvar a amiga, Jade Verde entregou Xu Shilin ao pai e foi procurar Fa Hai. Quando  encontrou a tartaruga, elevou-se nos ares, com uma espada de prata e gritou à inimiga.

JADE VERDE: Fa Hai! Fa Hai, não te escondas! Trago comigo um novo exército que jamais derrotarás. Não escapas velha tartaruga, maldita sejas tu!

FA HAI: Fazes-me rir, pobre cobra!

A luta começou de novo. Uma luta ainda pior com ventos tão rápidos como nunca se vira e ondas cinco vezes mais altas. Raios e coriscos iluminavam o céu e a terra tremia. De súbito, caiu um raio no ferro e retorceu-o de tal modo que as pontas quebradas tomaram a forma de flores. De seguida, a força das águas abriu brechas na muralha, submergiu-a e, por breves instantes, o lago ficou seco. Então um terramoto fez desabar o pagode. Uma rajada de vento levou Fa Hai para longe e lançou-a ao mar, transformada em caranguejo!


Quando tudo terminou, fez-se silêncio profundo. Jade Verde apareceu, retirou dos escombros o vaso de ouro, abriu-o ao meio com um golpe de espada e, lá de dentro, saiu Pérola Branca na sua forma de mulher. 

PÉROLA BRANCA: Sempre acreditei que me salvarias, querida amiga.

JADE VERDE: Vamos para casa.

Quando entrou no jardim, Pérola Branca viu Xu Xian e o filho e correu a abraçá-los.

PÉROLA BRANCA: Que alegria! Nunca mais nos separamos.

E assim foi. A partir daquele dia nunca mais se separaram.

E ainda hoje os avós contam aos netos a estranha história de amor que, em tempos que já lá vão, uniu uma cobra branca com poderes mágicos a um simples mortal. 


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